segunda-feira, 16 de junho de 2014

O FUTEBOL, A COPA E O BRASIL

Desde antes da primeira conquista brasileira em 1958 na Suécia, o Brasil já se insinuava como um berço do futebol-arte, mas nos faltava, como sempre nos faltou, a organização fora das quatro linhas. Ainda assim, no entanto, mesmo com as inúmeras carências estruturais que persistem até os dias de hoje, o Brasil foi aos poucos se impondo como grande celeiro de virtuoses, de craques na verdadeira acepção da palavra. Aqui surgiam talentos às pencas, pelos campinhos de pelada, pelas várzeas, pelas praias e pelos clubes, sempre com o viés do virtuosismo, da habilidade, do talento puro.
 
Veio a era Pelé/Garrincha e com os dois gênios da bola uma geração inesquecível que encantou o universo do futebol e cunhou para sempre o Brasil como o país do futebol, eterno favorito às conquistas. Por décadas fomos exatamente o que diziam de nós e oferecemos centenas de grandes jogadores aos quatro cantos do planeta.
 
É difícil dizer, precisar, quando exatamente esse quadro começa a mudar e passa a frequentar uma realidade paralela, uma certeza ainda habitando nosso inconsciente coletivo, mas cada vez mais afastada da verdade dos campos. Talvez tenha sido no início dos anos 1990, quando foram desaparecendo os campinhos, a várzea sendo  substituída por condomínios, mas eu particularmente entendo que esse processo  começou quando os clubes, as  federações e a confederação mantiveram os olhos vendados diante do despreparo daqueles que conduziam nosso trabalho de base, fizeram vista grossa à total falta de estrutura mínima para a prática do esporte, aprovando campos e estádios sem  condição de receber jogos, profissionais ou não.

Sempre foi voz corrente que a habilidade do jogador brasileiro advinha dessa dificuldade vivida nos campos esburacados dos nossos campeonatos, mas nossa habilidade nascia na liberdade de criar sem as censuras que hoje são a tônica das escolinhas de base...
 
Assim, enquanto a Europa busca se aprimorar nos fundamentos do esporte, constrói bons e bem cuidados estádios com tapetes de grama onde a bola rola macia, aqui são ignorados os fundamentos, os equipamentos e, o que é pior, o cliente que a tudo sustenta. Estádios de segunda e terceira categoria, gramados que mal podem ser assim nominados, árbitros amadores regendo atletas profissionais, empresários e atravessadores dominando por completo o cenário de clubes e federações, além de um enorme e crítico distanciamento da evolução tática vivida fora do país.
 
De repente, em lugar de Zizinho, Zito, Didi, Gérson e tantos outros, começam a habitar nossos campos os "cabeças de bagre" - os tais  cabeças de área - e os "armandinhos", essa turma do futebol caranguejo que se desloca para os lados e mal consegue atingir a área adversária. Em lugar da antiga profusão de atacantes, eméritos dribladores e implacáveis goleadores, o Brasil começa a produzir grossos vigorosos, corredores sem cérebro, deuses da raça, todos incentivados pelos intrépidos "professores"...
 
Some-se a tudo isso o crescimento alucinante de uma nova categoria de jogadores a trazer para dentro dos campos uma perigosa mistura de valores nem sempre das mais verdadeiras ou produtivas, que resulta em um cinzento quadro de mediocridade técnica. De uma hora para outra não é mais o talento que define o ingresso do jovem, mas o empresário de maior rede de influência, ou o lobby dos atletas de Cristo, ou o da imprensa e o das "torcidas" organizadas, esse antro de marginais que se apresenta em facções como os criminosos e como tal agem dentro e fora dos estádios sob o beneplácito de autoridades e dirigentes que deles se utilizam para seus próprios interesses políticos.
 
Paralelamente a tudo isso, o esporte cresce em importância mercadológica pelo mundo e movimenta mais e mais milhões em patrocínios, transmissão televisiva, direitos de imagem, público e transferências de atletas. Nossos campeonatos, antes palco de talentos e grandes multidões  se esvaziam e se apequenam, todos os poucos - e também os potenciais - talentos deixam o país para jogar em qualquer lugar do exterior. Aqui se estabelece um padrão indigente de futebol, retrato fiel do nosso extrato social majoritário e da bandidagem que tomou conta do esporte.
 
Dentro de campo o que hoje vemos já não é mais o desfile de craques de outrora, até porque a imprensa, em sua grande maioria, perdeu as referências do que seja um craque e assim denomina qualquer cidadão uniformizado que esteja dentro de campo, não importando seu desempenho. Basta uma tarde feliz de um desses e a imprensa já começa a incensá-lo como um fora de série.

Hoje o campo abriga uma esmagadora maioria de praticantes de um futebol cafajeste, sem respeito à essência ou  à tradição de nossa história, pequeno sob todos os parâmetros do nosso glorioso passado. Dentro das quatro linhas fala-se o idioma das favelas, o dialeto dos traficantes, sem nenhum pudor. As atitudes são igualmente cafajestes; simula-se, agride-se, desrespeita-se a tudo e a todos sem qualquer distinção de camisa. As raras exceções apenas confirmam a regra dominante ao destoar na paisagem.
 
O que deveria ser "fair-play" é de fato um acinte, um deboche em que uma jogada interrompida por uma simulação é depois "devolvida" ao adversário que realmente foi cavalheiro a sessenta metros do seu local de origem. A suposta dor nada mais era que um artifício para evitar um ataque, um perigo. Um simples movimento de mãos ou de braços sem qualquer contato com o corpo adversário gera um mergulho em estertor de morte, rosto coberto e indignação rampante sobre as fracas arbitragens.
 
Dos noventa minutos de jogo, o público raramente recebe mais que trinta ou trinta e cinco minutos de bola em jogo, tantas são as paralisações, como se não fosse o futebol um esporte de contato. Os tais "jogadores" testam os limites dos árbitros e sua capacidade para conduzir as partidas desde o primeiro minuto e são capazes de entradas criminosas sobre colegas de profissão em nome da tal raça, do "espírito" de competição, pela certeza de que suas punições serão tão brandas quanto a conivência de seus treinadores.
 
Em média, o futebol brasileiro de nossos dias apresenta cerca de quarenta ou mais faltas por partida e um absurdo número de passes errados próximo da casa da centena em muitos jogos. Estamos falando de passe de metro, metro e meio; passe que é o primeiro fundamento do esporte! Isso sem falar dos chutes em que a bola sequer pode ser enquadrada na mesma foto da baliza e de cruzamentos que nada mais são que chutes sem direção, sem qualquer pretensão de encontrar algum companheiro de equipe...
 
A Copa no Brasil traz um cenário inédito de campos perfeitos, lisos e estádios minimamente confortáveis, ainda que inacabados, mas deixa no ar aquelas dúvidas incômodas: serão um dia finalizados? os campos continuarão perfeitos? haverá manutenção, essa coisa desconhecida de nossas administrações?

Por outro lado, a Copa do Mundo pode até nos presentear com mais um título e é esse o desejo de boa parte dos brasileiros, apesar da  nossa indignação pela corrupção evidente, pelo descaso das autoridades com os compromissos assumidos e, principalmente, com aquele que deveria ser o maior beneficiado pelo evento: o cidadão que bancou a festa com seus impostos.
 
Só que essa conquista, caso ocorra, em nada alterará a realidade do nosso futebol: já não somos mais o grande celeiro de virtuosos, já não produzimos craques em profusão e por todos os lados, já não apresentamos fenômenos a qualquer momento. Não, definitivamente não. Hoje o que mostramos ao mundo é um universo corrompido, degradado, afastado dos princípios morais que deveriam reger todo e qualquer esporte, apesar de haver um minguado sinal de reação com o natimorto movimento  "Bom Senso Futebol Clube" que, capitaneado por algumas raridades ainda presentes em nosso cotidiano, imaginava poder mudar este cenário aterrador que envergonha nossa história tão vencedora, tão admirada.
 
A crua realidade é essa: o nítido reflexo de uma sociedade claramente esfacelada em seus valores morais, deteriorada em seu tecido humano por uma politica imoral, amoral e anacrônica que lhe impõe um atraso educacional e cultural de dimensão bíblica e contribui para um assustador distanciamento do mundo civilizado.
 
Nesse país onde a morte foi banalizada, onde as liberdades se esvaem pelas trevas ideológicas de um poder corrompido em sua essência, onde os valores e as instituições mais preciosas foram relegados ao abandono e à negação, o que fica é a tristeza de nos ver praticar esse futebol cafajeste em lugar daquele que um dia fez o mundo nos reverenciar como berço da arte no futebol.

Quem sabe a seleção pode nos resgatar a imagem dentro de campo?

Pelo menos nas arquibancadas o brasileiro recupera seu senso crítico e manifesta seu repúdio a esse corrupto circo instalado em Brasília; o corrente coro que homenageia o poste petista em todos os estádios do país é mais que revelador, é uma esperança de que a sociedade tenha acordado e esteja pronta para defenestrar essa ditadura petista pelo grito das urnas.